Com a Europa convulsionada pela decisão democrática do povo da Grécia de rejeitar o acordo de austeridade e às vésperas de mais uma Cúpula dos BRICS, esse “achado literário” desperta interesse e faz pensar. |
Soberanos: enquanto a Alemanha "dá as cartas" na Europa, a China destoa entre os BRICS
Nas famosas Conversações de Goethe com Eckermann, o meticuloso admirador do grande poeta e pensador romântico registrou em uma nota de 26 de abril de 1823 o interesse do seu amigo e mestre em um globo (ou mapa?), obra de um espanhol, que teria pertencido a Carlos V, cujo império se estendia da Península Ibérica à Europa Central. Goethe teria ficado especialmente impressionado com uma inscrição: “Os chineses são um povo que apresenta muita semelhança (analogie, na versão francesa) com os alemães”. Não tenho a menor ideia de quais foram os pontos de contato que o autor dos rabiscos que impressionaram Goethe tinha em mente ao comparar os dois povos (nem se poderia dizer “dois países”, pois, no século XVI, a China era um império continental e a Alemanha um amontoado de principados e ducados, mal saídos do feudalismo).
Com a Europa convulsionada pela decisão democrática do povo da Grécia de rejeitar o acordo proposto para mais uma fase do resgate (sic) de sua combalida economia e às vésperas de mais uma Cúpula dos BRICS, esse “achado literário” desperta interesse e faz pensar. A Alemanha desfruta de uma preponderância quase hegemônica no continente europeu como há muitos séculos nenhuma potência deteve, nem mesmo o império dos Habsburgo à época do próprio Carlos V. Estamos longe do Balance of Power que David Hume identificou no século XVIII e do qual a Inglaterra se valeu por séculos para garantir sua supremacia nos mares e evitar tentativas de dominação oriundas de alguma potência continental. Indiscutivelmente, na Europa de hoje, Berlim “dá as cartas”, para o bem ou para o mal, como diria um dos nossos generais presidentes, coincidentemente de origem teutônica. Talvez isso explique, mais até do que divergências sobre moeda única, embora as duas coisas estejam ligadas, por que Londres se sente tão incomodada atualmente na União Europeia.
Os BRICS estão longe de ser um grupo coeso como a União Europeia pretende ser. E não está nos planos dos dirigentes dos seus cinco integrantes caminhar, a curto e médio prazo, em direção a uma moeda comum, apesar da crescente importância do renminbi. Mas é indiscutível a existência de certa assimetria entre seus integrantes. Sob este aspecto, muito limitado, pode-se dizer que a China estaria para os BRICS como a Alemanha está para a Europa. Na verdade, no caso do nosso grupo, a desproporção é certamente maior, o que cria mais oportunidades, porém, certamente também inspira cuidados. Por ter participado ativamente dos esforços para a criação dos BRICS, sinto-me à vontade para fazer esse comentário, não uma crítica, mas uma constatação.
É sempre bom lembrar que a primeira iniciativa brasileira no sentido de formar um grupo, não regional, de tamanho manejável e não centrado em um tema específico, foi em relação ao IBAS. Índia, Brasil e África do Sul eram, e são, três grandes democracias multiculturais e multiétnicas, cada uma em uma região distinta do mundo em desenvolvimento. Os BRICS, ou melhor, os BRIC foram uma invenção do mercado, da qual os políticos e diplomatas, eu entre eles, nos apropriamos. A parceria estratégica com a China, lançada inicialmente por Itamar Franco e Jiang Zemin, desenvolveu-se nos governos seguintes e, do ponto de vista econômico, “explodiu” na era Lula-Hu Jintao. Com a Rússia, a aproximação recente teve a ver, entre outros fatores, com as atitudes semelhantes em relação ao uso unilateral da força, especialmente a invasão do Iraque. China e Rússia bateram mais de uma vez à porta do IBAS por perceber o potencial daquele G-3 como foro de coordenação entre países emergentes de peso, com fortes afinidades entre si, inclusive a postulação por assentos permanentes no Conselho de Segurança da ONU.
Com a criação dos BRIC e posteriormente com a incorporação de Pretória, o grupo ganhou musculatura, sobretudo econômica, embora se possa sustentar que, em termos de soft power, o IBAS tivesse, e siga a ter, a meu ver, mais atrativos. A existência de um grupo naturalmente não exclui a do outro. E a expectativa seria de que, ao lado do mais poderoso BRICS, Índia, Brasil e África do Sul aprofundem a cooperação trilateral, que já rendeu frutos, inclusive com ações em favor de países mais pobres. Há no IBAS um grau de aproximação de posições que dificilmente será alcançado nos BRICS, o que não reduz a importância deste como fator de equilíbrio na ordem mundial e de reforço à multipolaridade, do nosso interesse.
Não sei, ao longo das próximas semanas e meses, qual será a atitude de Berlim e da Europa diante da crise grega: se seguirá a prevalência da ortodoxia, que levou a Grécia à beira do caos social e político, ou se predominará uma visão mais abrangente, mais humanista (o presidente do Parlamento Europeu já fala em ação humanitária), mais em conformidade com os ideais proclamados da integração europeia. Os paralelos entrevistos pelo autor da comparação entre alemães e chineses, há quatro séculos, não vão muito longe e certamente não se aplicam a atitudes dos respectivos países em política internacional. Mas, e isso vale tanto para desenvolvidos quanto para emergentes, é sempre bom ter presente que a busca do equilíbrio global e de um mundo mais democrático dos pontos de vista econômico, social e político é um dos fatores que inspiraram a formação de uma pluralidade de grupos de países em desenvolvimento, na qual a diplomacia brasileira empenhou-se, como o IBAS, a ASPA, a ASA e, sobretudo, a Unasul e a Celac. Os BRICS são, ou deveriam ser, um deles.
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